Índice da Obra Anterior: 1 – Introdução Seguinte: 3 – Diferenças de Capacidade Entre os Seres Humanos
– Unidade e Diversidade nas Tradições Religiosas
– Budismo
– Confucionismo
– Cristianismo
– Hinduísmo
– Islamismo
– Judaísmo
– Taoísmo
– Xintoísmo
– A Unidade nas Ciências Contemporâneas
Uma visão de mundo que contemple uma unidade fundamental em relação à natureza profunda das consciências dos seres humanos e, ao mesmo tempo, uma grande diversidade de capacidades, certamente não é algo novo.
Milênios atrás essa mesma noção geral, acerca da importância decisiva de uma clara percepção, bem como de um justo equacionamento e de uma harmonização das diferenças entre os seres humanos, foi afirmada pelo grande clássico da filosofia tradicional chinesa, o I Ching, que é considerado um dos livros mais antigos que se tenha conhecimento. Lemos ali:
Essa visão está presente em praticamente todas as grandes tradições religiosas, embora mesmo dentro dessas tradições ela tenha sido corrompida de inúmeras maneiras, a exemplo do sistema de castas do Hinduísmo, ou da ordem estratificada do feudalismo relacionada com o Cristianismo, entre tantos outros exemplos.
De fato, essa degeneração ocorrida no campo das religiões trata-se de um aspecto importante para a compreensão das origens das falhas de percepção que hoje são dominantes no pensamento mundial (incluindo aqui a ciência e a filosofia), acerca da natureza e das capacidades dos seres humanos. Porém, uma análise dessas questões nos levaria muito além dos limites a que nos propusemos nessa obra.
No entanto, o fato de não analisarmos nessa obra os processos e as consequências da degeneração das interpretações religiosas não quer dizer que não possamos examinar, sinteticamente, os equívocos das filosofias sociais dominantes na atualidade, que são as teses centrais do Liberalismo e do Marxismo.
Apesar dessa grande degeneração ocorrida no campo do pensamento religioso, um conhecimento fundamental acerca da unidade e da diversidade humanas está presente, como dissemos acima, nas grandes tradições religiosas, muito embora hoje ele esteja, quase sempre, encoberto por grossas camadas de superstição e de idolatria.
Tendo em mente esse alerta, vejamos algumas citações extraídas dos textos de várias tradições religiosas, com o propósito de evidenciarmos, por meio do método comparativo, a existência milenar desse conhecimento dos dois aspectos fundamentais acima referidos – a unidade e a diversidade. Pois, como está escrito num dos Vedas (da tradição hinduísta): “A verdade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes”.
Estas citações são meros exemplos, entre uma quantidade muito grande de outras passagens que podem ser encontradas nessas tradições religiosas. Elas foram agrupadas dentro dos aspectos “Unidade” e “Diversidade” para facilitar a visualização desses dois aspectos fundamentais. A sequência das religiões segue tão somente à ordem alfabética.
Budismo
Diversidade:
“Poucos são os homens que chegam à outra margem do rio; a maioria deles se contenta em permanecer na mesma margem, subindo-a e descendo-a.” (Dhammapada, 49a)
“O néscio pode associar-se a um sábio toda a sua vida, mas percebe tão pouco da verdade como a colher do gosto da sopa. O homem inteligente pode associar-se a um sábio por um minuto, e perceber tanto da verdade quanto o paladar do sabor da sopa.” (Dhammapada, 64-65)
“Contempla este mundo, adornado como uma carruagem real! Os néscios estão encarapitados nele, mas os sábios não estão presos a ele.” (Dhammapada, 171)
“Que grandes, pequenos e médios façam todos o melhor ao seu alcance.” (Játacas, 121)
Unidade:
Diversidade:
“O homem superior pensa em seu caráter; o homem inferior pensa em sua posição. O homem superior busca o que é correto; o inferior, o que é lucrativo.” (Analectos, IV)
Unidade:
“Deus é amor; aquele que permanece no amor permanece em Deus, e nele permanece Deus.” (João, 4:16)
“Mente quem diz “amo a Deus”, mas odeia seu irmão. Quem ama a Deus ama também a seu irmão”. (João, 4:20-21)
“De um só sangue Ele fez todas as gerações humanas.” (Atos, 17:26)
“Em verdade vos digo que o quanto fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.” (Mateus, 25:40)
Diversidade:
“Porque assim é (o Reino dos Céus) como um homem que, ao ausentar-se para longe, chamou seus servos e lhes entregou os seus bens. E deu a um cinco talentos, e a outro dois, e a outro deu um, a cada um segundo a sua capacidade, e partiu logo.” (Parábola dos Talentos, Mateus, 25:14-15)
“Eis que o semeador saiu a semear. Quando semeava, uma parte das sementes caiu à beira do caminho, e vieram as aves e a comeram. Outra parte caiu nos lugares pedregosos, onde não havia muita terra; logo nasceu, porque a terra não era profunda, e tendo saído o sol, queimou-se; e porque não tinha raízes, secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e a sufocaram. Outra caiu na terra boa e deu frutos, havendo grãos que rendiam cem por um, outros sessenta, outros trinta por um. O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Parábola do Semeador, Mateus, 13:3-8)
Unidade:
“O verdadeiro conhecimento é ver uma vida imutável em todos os seres, e ver nos seres separados o Uno Inseparável.” (Bhagavad-Gita, XVIII)
“Amar todas as coisas, grandes ou pequenas, tal como Deus as ama, eis a verdadeira religião.” (Hitopadexa Upanishade)
Diversidade:
Unidade:
Diversidade:
“Fala aos homens segundo suas capacidades mentais; se lhes falares de coisas que não podem compreender, poderão incidir em erro.” (Hadith ou Máximas de Maomé, 143)
Unidade:
“Não temos todos nós um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo Deus?” (Malaquias, 2:10)
“Toda sabedoria vem de Deus, e com Ele está e esteve sempre, antes de todos os séculos.” (Eclesiástico, 1:1)
Diversidade:
“Quando os justos governam, o povo se regozija; mas quando no poder estão os perversos, o povo geme.” (Provérbios, 29:2)
“Entre os homens se distinguem quatro tipos de caráter. O neutro, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é meu, e o que é teu é teu’. O rústico, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é teu, e o que é teu é meu’. O santo, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é teu, e o que é teu é teu’. E o perverso, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é meu, e o que é teu é meu’.” (Máximas dos Pais, 5:13)
Unidade:
“Há uma coisa que existia antes do começo da terra e do céu, e o seu nome é o Tao [o grande princípio de ordem universal, sintetizador e harmonizador do “Yin” e do “Yang”]. O homem adapta-se à terra; a terra adapta-se ao firmamento; o firmamento adapta-se ao Tao; o Tao adapta-se à sua própria natureza.” (Tao-Te-King, 25)
“O Tao é inominável e oculto, e contudo todas as coisas se realizam nele.” (Tao-Te-King, 41)
Diversidade:
“É fácil seguir o grande Tao, mas o povo vagueia pelas veredas.” (Tao-Te-King, 53)
Unidade:
Diversidade:
“Para todas as coisas, grandes ou pequenas, cumpre descobrir o homem certo, e elas serão bem administradas.” (Nihongi ou Crônicas do Japão, cap. 22)
Como vemos, podemos encontrar nas várias tradições religiosas ensinamentos que corroboram a visão de mundo e do ser humano caracterizada pela existência de uma unidade essencial e de uma grande diversidade de capacidades manifestadas.
A seguir examinaremos essas duas características básicas da humanidade (unidade e diversidade) à luz de informações oriundas das ciências contemporâneas. No restante desse capítulo, reuniremos alguns conhecimentos científicos que esclarecem e corroboram o aspecto da “unidade”. No seguinte capítulo faremos o mesmo em relação ao aspecto da “diversidade”.
Fritjof Capra, físico de renome internacional e autor do best-seller O Tao da Física, situa muito bem nessa obra a questão da unidade sob o ponto de vista da Física contemporânea, inclusive em comparação à visão religiosa ou mística de antigas tradições orientais.
No capítulo “A Unidade de Todas as Coisas” ele examina como a teoria quântica e recentes experimentos no campo da física das partículas subatômicas tendem a corroborar e se aproximam muito da visão de mundo dos místicos.
Não é necessário repetirmos aqui tais teorias e experimentos científicos, os quais são conhecidos pelas pessoas da área, e podem ser complicados para os leigos no assunto. Citaremos apenas um parágrafo em que Fritjof Capra resume sua posição a respeito desse assunto:
Essa básica e estreita interconexão de todas as coisas na natureza parece ser o limite a que podemos chegar com o auxílio da ciência, no que diz respeito ao reconhecimento de uma unidade subjacente à humanidade e a todas as coisas. Como podemos ler na obra de F. Capra, ela se deriva muito naturalmente da teoria quântica. Tal estreita interconexão pode ser observada sob uma perspectiva científica em muitas outras áreas. Outro exemplo muito iluminador está no campo da Astrofísica, ao observarmos a nossa completa dependência do Sol na manutenção de toda a vida que hoje conhecemos, e de onde também podemos inferir muito da unidade subjacente a toda a natureza. Vejamos, a esse respeito, uma passagem do Dr. I.K. Taimni (PhD. em Química, Universidade de Londres), retirada de sua obra Gayatri, na qual lemos:
Ao menos no que diz respeito ao sistema solar, a citação acima nos mostra claramente como, mesmo no plano material que conhecemos cientificamente, todas as formas de vida possuem um centro único do qual elas dependem completamente, fazendo-nos lembrar da famosa afirmação da tradição de Hermes Trimegistro de que: – “Assim como o grande é o pequeno, tal como o que está no alto é o que está embaixo, e tal como o que está dentro é o que está fora”. Essa citação do Dr. Taimni também evidencia a estreita interdependência existente na natureza, bem como sugere belamente que toda a corrente da vida possui uma única fonte.
Os conhecimentos oriundos de outras áreas da ciência também corroboram esta estreita interdependência das formas de vida no nosso planeta. A Biologia, e dentro dela especialmente a Ecologia, conhece cada vez mais precisamente que a poluição e a destruição do ambiente natural de uma parte do planeta podem ocasionar desequilíbrios catastróficos não apenas naquele lugar, mas também em outras áreas muito distantes.
É quase desnecessário mencionar exemplos a esse respeito, uma vez que alguns deles são conhecidos por quase todas as pessoas medianamente informadas em nossos dias. Nos referimos aos desequilíbrios climáticos provocados pela destruição das florestas, a extensão transcontinental dos efeitos de desastres atômicos como os de Chernobyl ou Fukushima, as chuvas ácidas provocadas pela poluição industrial, o efeito estufa que produz um aumento da temperatura do planeta – com resultados potencialmente catastróficos – e que é devido à poluição oriunda, sobretudo, das várias formas de combustão e liberação de gás carbônico, ou ainda do buraco na camada de ozônio da atmosfera terrestre, ao que tudo indica em franco crescimento, e também de gravíssimas consequências, entre outras tantas formas de poluição e devastação do ambiente natural.
Mesmo no campo das ciências sociais, políticas e econômicas essa interdependência torna-se cada vez mais aparente. Apenas para darmos um exemplo, os efeitos da desorganização político-econômica que resultam na miséria de muitos, dentro ou fora de um mesmo país, não se restringem somente àqueles que são diretamente afetados pela miséria, mas repercutem inexoravelmente sobre a qualidade de vida até mesmo dos mais abastados, sob a forma de aumentos assustadores na criminalidade: nos roubos, assaltos, sequestros, latrocínios, terrorismo, na proliferação das drogas e de outras tantas formas de violência social. Tudo isso significando uma enorme perda na qualidade de vida mesmo daquelas pessoas aparentemente não atingidas pela miséria, ou mesmo das mais ricas. Esse simples exemplo da interconexão na área social já é suficiente para mostrar a total impossibilidade de considerarmos que os destinos de alguns seres humanos podem estar dissociados dos destinos dos demais seres humanos.
Como dissemos, a comprovação da existência dessa estreita interconexão entre todas as coisas, humanas ou não humanas, talvez seja o limite até onde a ciência possa nos auxiliar, no sentido de corroborar o aspecto da existência de uma unidade subjacente a todos os seres humanos. Mas o fato é que já se trata de algo muito significativo. Sob todos os ângulos que se possa analisar, os avanços dos conhecimentos científicos somente têm reforçado e apontado na direção de uma unicidade cada vez mais aparente entre todas as coisas e fenômenos da natureza. E a espécie humana, como vimos, certamente não se constitui em nenhuma exceção a essa regra. O polo da unidade subjacente à família humana pode encontrar, portanto, dentro dos conhecimentos científicos hoje ao nosso dispor, muitos argumentos e inferências em seu favor. No capítulo seguinte trataremos do aspecto da Diversidade sob o ângulo da ciência experimental de nossos dias.
Índice da Obra Anterior: 1 – Introdução Seguinte: 3 – Diferenças de Capacidade Entre os Seres Humanos