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2 – UNIDADE SUBJACENTE À HUMANIDADE

Unidade e Diversidade nas Tradições Religiosas

Uma visão de mundo que contemple uma unidade fundamental em relação à natureza profunda das consciências dos seres humanos e, ao mesmo tempo, uma grande diversidade de capacidades, certamente não é algo novo.

Milênios atrás essa mesma noção geral, acerca da importância decisiva de uma clara percepção, bem como de um justo equacionamento e de uma harmonização das diferenças entre os seres humanos, foi afirmada pelo grande clássico da filosofia tradicional chinesa, o I Ching, que é considerado um dos livros mais antigos que se tenha conhecimento. Lemos ali:

“Acima o céu, abaixo o lago: a imagem da CONDUTA.
Assim o homem superior discrimina entre o alto e o baixo e fortalece desse modo a mente do povo.
“O céu e o lago evidenciam uma diferença de altitude inerente à essência dos dois, e que, por isso, não desperta inveja. Assim também entre os homens há, necessariamente, diferenças de nível. É impossível chegar a uma igualdade universal.
Porém, o que importa é que as diferenças de nível na sociedade não sejam arbitrárias e injustas, pois nesse caso a inveja e a luta de classes inevitavelmente se seguiriam.
Se, ao contrário, às diferenças de nível externo corresponderem diferenças de capacidade interna, e o valor interno for o critério para a determinação da hierarquia externa, a tranquilidade reinará entre os homens e a sociedade encontrará ordem.” (I Ching (Livro das Mutações), Richard Wilheim, p. 56; grifos nossos)

Essa visão está presente em praticamente todas as grandes tradições religiosas, embora mesmo dentro dessas tradições ela tenha sido corrompida de inúmeras maneiras, a exemplo do sistema de castas do Hinduísmo, ou da ordem estratificada do feudalismo relacionada com o Cristianismo, entre tantos outros exemplos.

De fato, essa degeneração ocorrida no campo das religiões trata-se de um aspecto importante para a compreensão das origens das falhas de percepção que hoje são dominantes no pensamento mundial (incluindo aqui a ciência e a filosofia), acerca da natureza e das capacidades dos seres humanos. Porém, uma análise dessas questões nos levaria muito além dos limites a que nos propusemos nessa obra.

No entanto, o fato de não analisarmos nessa obra os processos e as consequências da degeneração das interpretações religiosas não quer dizer que não possamos examinar, sinteticamente, os equívocos das filosofias sociais dominantes na atualidade, que são as teses centrais do Liberalismo e do Marxismo.

Apesar dessa grande degeneração ocorrida no campo do pensamento religioso, um conhecimento fundamental acerca da unidade e da diversidade humanas está presente, como dissemos acima, nas grandes tradições religiosas, muito embora hoje ele esteja, quase sempre, encoberto por grossas camadas de superstição e de idolatria.

Tendo em mente esse alerta, vejamos algumas citações extraídas dos textos de várias tradições religiosas, com o propósito de evidenciarmos, por meio do método comparativo, a existência milenar desse conhecimento dos dois aspectos fundamentais acima referidos – a unidade e a diversidade. Pois, como está escrito num dos Vedas (da tradição hinduísta): “A verdade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes”.

Estas citações são meros exemplos, entre uma quantidade muito grande de outras passagens que podem ser encontradas nessas tradições religiosas. Elas foram agrupadas dentro dos aspectos “Unidade” e “Diversidade” para facilitar a visualização desses dois aspectos fundamentais. A sequência das religiões segue tão somente à ordem alfabética.


Budismo

Unidade:
“Na Essência (no Absoluto) não há olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem língua, nem audição, nem olfato, nem gustação, nem tato, nem processo mental, nem objetos desse processo mental, nem conhecimento, nem ignorância. Não há destruição de objetos ou cessação de conhecimento, nem cessação de ignorância.
“Na Essência (no Absoluto) não há as Quatro Nobres Verdades: não há Dor, nem causa da Dor, nem cessação da Dor, nem Nobre Caminho que leva à cessação da Dor. Não há decadência ou morte, nem destruição da noção de decadência e morte. Não há o conhecimento do Nirvana, não há obtenção do Nirvana, nem não-obtenção do Nirvana.” (Maha-Prajna-Paramita)

Diversidade:

“Poucos são os homens que chegam à outra margem do rio; a maioria deles se contenta em permanecer na mesma margem, subindo-a e descendo-a.” (Dhammapada, 49a)

“O néscio pode associar-se a um sábio toda a sua vida, mas percebe tão pouco da verdade como a colher do gosto da sopa. O homem inteligente pode associar-se a um sábio por um minuto, e perceber tanto da verdade quanto o paladar do sabor da sopa.” (Dhammapada, 64-65)

“Contempla este mundo, adornado como uma carruagem real! Os néscios estão encarapitados nele, mas os sábios não estão presos a ele.” (Dhammapada, 171)

“Que grandes, pequenos e médios façam todos o melhor ao seu alcance.” (Játacas, 121)


Confucionismo

Unidade:

“Deus produziu o que há de bom em nós.” (Analectos, VII)

Diversidade:

“O homem superior pensa em seu caráter; o homem inferior pensa em sua posição. O homem superior busca o que é correto; o inferior, o que é lucrativo.” (Analectos, IV)

“O bom e o mau governo dependem dos dirigentes. Os cargos devem ser confiados, não aos favoritos do príncipe, porém somente aos homens capazes. As funções devem ser confiadas, não aos homens viciosos, porém aos homens eminentes por suas virtudes e por seus talentos.” (Chu-King, VIII, II, 5)

Cristianismo

Unidade:

“Deus é amor; aquele que permanece no amor permanece em Deus, e nele permanece Deus.” (João, 4:16)

“Mente quem diz “amo a Deus”, mas odeia seu irmão. Quem ama a Deus ama também a seu irmão”. (João, 4:20-21)

“De um só sangue Ele fez todas as gerações humanas.” (Atos, 17:26)

“Em verdade vos digo que o quanto fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.” (Mateus, 25:40)

Diversidade:

“Porque assim é (o Reino dos Céus) como um homem que, ao ausentar-se para longe, chamou seus servos e lhes entregou os seus bens. E deu a um cinco talentos, e a outro dois, e a outro deu um, a cada um segundo a sua capacidade, e partiu logo.” (Parábola dos Talentos, Mateus, 25:14-15)

“Eis que o semeador saiu a semear. Quando semeava, uma parte das sementes caiu à beira do caminho, e vieram as aves e a comeram. Outra parte caiu nos lugares pedregosos, onde não havia muita terra; logo nasceu, porque a terra não era profunda, e tendo saído o sol, queimou-se; e porque não tinha raízes, secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e a sufocaram. Outra caiu na terra boa e deu frutos, havendo grãos que rendiam cem por um, outros sessenta, outros trinta por um. O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Parábola do Semeador, Mateus, 13:3-8)


Hinduísmo

Unidade:

“O verdadeiro conhecimento é ver uma vida imutável em todos os seres, e ver nos seres separados o Uno Inseparável.” (Bhagavad-Gita, XVIII)

“Amar todas as coisas, grandes ou pequenas, tal como Deus as ama, eis a verdadeira religião.” (Hitopadexa Upanishade)

Diversidade:

“O mundo dos homens, achando-se sob o domínio da ilusão dessas três qualidades da natureza (“gunas”), não compreende que Eu sou superior a elas, e conservo-Me intacto e imutável no meio dos inúmeros acontecimentos e mudanças.
“Essa ilusão é muito forte, e tão denso é o seu véu que é difícil aos olhos humanos penetrá-lo. Somente aqueles que a Mim se dirigem e se deixam iluminar pela chama que está detrás da fumaça, vencem a ilusão e chegam até Mim.
“Malfeitores e tolos não Me procuram, nem aqueles que nutrem pensamentos baixos, nem aqueles que veem, no vasto espetáculo da natureza, somente o jogo das forças, sem diretor; nem aqueles que extinguiram em si a centelha da vida espiritual e se tornaram plenamente materialistas.
“Há quatro classes de gente que a Mim se dirigem: – os infelizes, os que investigam a verdade, os bondosos e os sábios.” (Bhagavad-Gita, VII)

Islamismo

Unidade:

“Ó Povo! Servi Alá, que vos criou, a vós e aos que vos precederam. Ele fez a terra para vosso assento e o céu para vosso dossel. E ele faz cair chuva do céu para produzir os frutos com que vos sustentais.” (Corão, 2:20)

Diversidade:

“Fala aos homens segundo suas capacidades mentais; se lhes falares de coisas que não podem compreender, poderão incidir em erro.” (Hadith ou Máximas de Maomé, 143)


Judaísmo

Unidade:

“Não temos todos nós um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo Deus?” (Malaquias, 2:10)

“Toda sabedoria vem de Deus, e com Ele está e esteve sempre, antes de todos os séculos.” (Eclesiástico, 1:1)

Diversidade:

“Quando os justos governam, o povo se regozija; mas quando no poder estão os perversos, o povo geme.” (Provérbios, 29:2)

“Entre os homens se distinguem quatro tipos de caráter. O neutro, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é meu, e o que é teu é teu’. O rústico, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é teu, e o que é teu é meu’. O santo, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é teu, e o que é teu é teu’. E o perverso, que é daquele que diz: – ‘o que é meu é meu, e o que é teu é meu’.” (Máximas dos Pais, 5:13)


Taoísmo

Unidade:

“Há uma coisa que existia antes do começo da terra e do céu, e o seu nome é o Tao [o grande princípio de ordem universal, sintetizador e harmonizador do “Yin” e do “Yang”]. O homem adapta-se à terra; a terra adapta-se ao firmamento; o firmamento adapta-se ao Tao; o Tao adapta-se à sua própria natureza.” (Tao-Te-King, 25)

“O Tao é inominável e oculto, e contudo todas as coisas se realizam nele.” (Tao-Te-King, 41)

Diversidade:

“É fácil seguir o grande Tao, mas o povo vagueia pelas veredas.” (Tao-Te-King, 53)


Xintoísmo

Unidade:

“Todos os homens são irmãos; todos recebem as bênçãos do mesmo céu.” (Provérbio do Kurozomi Kyo)

Diversidade:

“Para todas as coisas, grandes ou pequenas, cumpre descobrir o homem certo, e elas serão bem administradas.” (Nihongi ou Crônicas do Japão, cap. 22)


Como vemos, podemos encontrar nas várias tradições religiosas ensinamentos que corroboram a visão de mundo e do ser humano caracterizada pela existência de uma unidade essencial e de uma grande diversidade de capacidades manifestadas.

A seguir examinaremos essas duas características básicas da humanidade (unidade e diversidade) à luz de informações oriundas das ciências contemporâneas. No restante desse capítulo, reuniremos alguns conhecimentos científicos que esclarecem e corroboram o aspecto da “unidade”. No seguinte capítulo faremos o mesmo em relação ao aspecto da “diversidade”.


A Unidade nas Ciências Contemporâneas

Fritjof Capra, físico de renome internacional e autor do best-seller O Tao da Física, situa muito bem nessa obra a questão da unidade sob o ponto de vista da Física contemporânea, inclusive em comparação à visão religiosa ou mística de antigas tradições orientais.

No capítulo “A Unidade de Todas as Coisas” ele examina como a teoria quântica e recentes experimentos no campo da física das partículas subatômicas tendem a corroborar e se aproximam muito da visão de mundo dos místicos.

Não é necessário repetirmos aqui tais teorias e experimentos científicos, os quais são conhecidos pelas pessoas da área, e podem ser complicados para os leigos no assunto. Citaremos apenas um parágrafo em que Fritjof Capra resume sua posição a respeito desse assunto:

“A Física moderna, é claro, trabalha numa perspectiva muito diferente e não pode ir tão longe (quanto à visão do místico) na experiência da unidade de todas as coisas. Mas na teoria atômica ela deu um grande passo na direção da visão de mundo dos místicos. A teoria quântica aboliu a noção de objetos fundamentalmente separados, introduziu o conceito do participante para substituir aquele do observador, e pode até mesmo achar necessário incluir a consciência humana em sua descrição do mundo. Ela passou a ver o universo como uma rede interconectada de relações físicas e mentais, cujas partes são definidas somente através de suas conexões com o todo.” (The Tao of Physics, p. 129)

Essa básica e estreita interconexão de todas as coisas na natureza parece ser o limite a que podemos chegar com o auxílio da ciência, no que diz respeito ao reconhecimento de uma unidade subjacente à humanidade e a todas as coisas. Como podemos ler na obra de F. Capra, ela se deriva muito naturalmente da teoria quântica. Tal estreita interconexão pode ser observada sob uma perspectiva científica em muitas outras áreas. Outro exemplo muito iluminador está no campo da Astrofísica, ao observarmos a nossa completa dependência do Sol na manutenção de toda a vida que hoje conhecemos, e de onde também podemos inferir muito da unidade subjacente a toda a natureza. Vejamos, a esse respeito, uma passagem do Dr. I.K. Taimni (PhD. em Química, Universidade de Londres), retirada de sua obra Gayatri, na qual lemos:

“O Sol é o centro do sistema solar, em torno do qual todos os planetas estão girando. A ciência demonstrou que o Sol é a fonte de todos os tipos de energia que são necessários para a vida no sistema solar. Mas a ciência considera o Sol apenas como uma enorme bola de fogo cuja energia está sendo mantida pela conversão de Hidrogênio em Hélio, a reação termonuclear subjacente à produção da bomba de Hidrogênio. Esse potente centro de energia física está continuamente liberando todos os tipos de energias e vibrações no sistema solar, como o calor, a luz e os outros tipos de energias que são utilizados na manutenção da vida em nosso planeta, em todas as suas formas. A forma maravilhosa como estão bem ajustadas e reguladas essas várias forças operando no sistema solar pode ser percebida pelo fato de que se a temperatura do Sol se elevasse apenas um por cento, todos nós seríamos reduzidos a cinzas instantaneamente, e se ela caísse um por cento, seríamos congelados na mesma hora.” (p. 80)

Ao menos no que diz respeito ao sistema solar, a citação acima nos mostra claramente como, mesmo no plano material que conhecemos cientificamente, todas as formas de vida possuem um centro único do qual elas dependem completamente, fazendo-nos lembrar da famosa afirmação da tradição de Hermes Trimegistro de que: – “Assim como o grande é o pequeno, tal como o que está no alto é o que está embaixo, e tal como o que está dentro é o que está fora”. Essa citação do Dr. Taimni também evidencia a estreita interdependência existente na natureza, bem como sugere belamente que toda a corrente da vida possui uma única fonte.

Os conhecimentos oriundos de outras áreas da ciência também corroboram esta estreita interdependência das formas de vida no nosso planeta. A Biologia, e dentro dela especialmente a Ecologia, conhece cada vez mais precisamente que a poluição e a destruição do ambiente natural de uma parte do planeta podem ocasionar desequilíbrios catastróficos não apenas naquele lugar, mas também em outras áreas muito distantes.

É quase desnecessário mencionar exemplos a esse respeito, uma vez que alguns deles são conhecidos por quase todas as pessoas medianamente informadas em nossos dias. Nos referimos aos desequilíbrios climáticos provocados pela destruição das florestas, a extensão transcontinental dos efeitos de desastres atômicos como os de Chernobyl ou Fukushima, as chuvas ácidas provocadas pela poluição industrial, o efeito estufa que produz um aumento da temperatura do planeta – com resultados potencialmente catastróficos – e que é devido à poluição oriunda, sobretudo, das várias formas de combustão e liberação de gás carbônico, ou ainda do buraco na camada de ozônio da atmosfera terrestre, ao que tudo indica em franco crescimento, e também de gravíssimas consequências, entre outras tantas formas de poluição e devastação do ambiente natural.

Mesmo no campo das ciências sociais, políticas e econômicas essa interdependência torna-se cada vez mais aparente. Apenas para darmos um exemplo, os efeitos da desorganização político-econômica que resultam na miséria de muitos, dentro ou fora de um mesmo país, não se restringem somente àqueles que são diretamente afetados pela miséria, mas repercutem inexoravelmente sobre a qualidade de vida até mesmo dos mais abastados, sob a forma de aumentos assustadores na criminalidade: nos roubos, assaltos, sequestros, latrocínios, terrorismo, na proliferação das drogas e de outras tantas formas de violência social. Tudo isso significando uma enorme perda na qualidade de vida mesmo daquelas pessoas aparentemente não atingidas pela miséria, ou mesmo das mais ricas. Esse simples exemplo da interconexão na área social já é suficiente para mostrar a total impossibilidade de considerarmos que os destinos de alguns seres humanos podem estar dissociados dos destinos dos demais seres humanos.

Como dissemos, a comprovação da existência dessa estreita interconexão entre todas as coisas, humanas ou não humanas, talvez seja o limite até onde a ciência possa nos auxiliar, no sentido de corroborar o aspecto da existência de uma unidade subjacente a todos os seres humanos. Mas o fato é que já se trata de algo muito significativo. Sob todos os ângulos que se possa analisar, os avanços dos conhecimentos científicos somente têm reforçado e apontado na direção de uma unicidade cada vez mais aparente entre todas as coisas e fenômenos da natureza. E a espécie humana, como vimos, certamente não se constitui em nenhuma exceção a essa regra. O polo da unidade subjacente à família humana pode encontrar, portanto, dentro dos conhecimentos científicos hoje ao nosso dispor, muitos argumentos e inferências em seu favor. No capítulo seguinte trataremos do aspecto da Diversidade sob o ângulo da ciência experimental de nossos dias.


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