Índice da Obra Anterior: 2 – Unidade Subjacente à Humanidade Seguinte: 4 – Liberalismo: Premissas e Sistema Político
– Os Estudos de Philip E. Converse
– Níveis de Abrangência na Compreensão Político-Social da População
– As Diferenças: Quantificação da Inter-Relação nos Sistemas de Crença
– As Diferenças: os Elementos de Maior Centralidade
– As Diferenças: O Papel Organizativo dos Conceitos Abstratos
– As Diferenças: Níveis de Abrangência da Classificação de Converse
– Nível I: Ideólogos
– Nível II: Quase-Ideólogos
– Nível III: “Interesse de Grupo”
– Nível IV: “Natureza dos Tempos”
– Nível V: “Sem Conteúdo Tipicamente Político”
– A Pesquisa Utilizada
– O Perfil dos Níveis de Abrangência nos EUA
– A Influência das Circunstâncias Materiais
– As Características dos Diferentes Níveis de Abrangência
– Quantidade de Informações Sobre Política
– Graus de Interesse por Política
– Votaria se Não Fosse Obrigatório?
– Conhecimento Sobre Eleições Diretas
– Conhecimento Sobre Esquerda e Direita
– As Diferenças Entre EUA e Brasil (Porto Alegre)
– O Papel Decisivo das Elites
– A Atualidade dos Dados
Passemos, agora, a um exame científico desse segundo aspecto fundamental da humanidade, que é o da grande diversidade de capacidades entre os indivíduos. Trataremos dessa questão com o auxílio de informações oriundas, sobretudo, da ciência política, as quais nos revelam o perfil da abrangência da consciência social da população.
Os grandes avanços na área dos computadores, a partir da metade do século XX, permitiram uma facilidade muito maior na realização de pesquisas amostrais abrangendo grandes populações, ou até mesmo nações inteiras com muitos milhões de habitantes, a exemplo dos EUA. Desse modo, pesquisas visando obter um panorama preciso e com base empírica (com base em informações obtidas através de pesquisas de campo) a respeito da realidade ideacional e da consciência social da população começaram a ser realizadas regularmente em vários lugares, sobretudo em centros ligados às grandes universidades. Um dos centros desse tipo, talvez o que acumule maior experiência e goze de maior prestígio internacional, é o “Survey Research Center” (Centro de Pesquisas Amostrais) ligado ao Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Michigan, nos EUA.
Os Estudos de Philip E. Converse
Um pesquisador bastante conhecido, que durante vários anos trabalhou nesse Centro, é Philip E. Converse, o qual, juntamente com mais três colegas, publicou em 1960 uma obra – que se tornou um clássico na área – chamada The American Voter (O Eleitor dos Estados Unidos da América). Philip Converse e seus colegas possuem vários trabalhos nesse campo de investigação. Dois dos textos bastante conhecidos de Converse são The Nature of Belief Systems in Mass Publics (A Natureza dos Sistemas de Crença na Massa), 1964, e Public Opinion and Voting Behavior (Opinião Pública e Comportamento Eleitoral), 1975, o primeiro deles também tendo se transformado em um clássico na área.
Nesses trabalhos Converse e seus colegas nos apresentam um perfil bastante preciso de algumas das principais características da consciência social da população norte-americana como um todo. Esses trabalhos estimularam pesquisas análogas em outros países, a exemplo de Political Experience and Electoral Politics in Brazil (Experiência Política e Política Eleitoral no Brasil), 1977, dissertação de doutorado (Connecticut), de Judson M. De Cew Jr., da minha própria dissertação de mestrado (UFRGS), A Consciência Política na Massa, 1984, e Political Representation in France (Representação Política na França), 1986, do próprio Converse em parceria com Roy Pierce.
No presente capítulo nos valeremos de alguns aspectos teóricos desses trabalhos, a exemplo da conhecida tipologia (categorias de classificação) a respeito dos níveis de abrangência conceitual na população, empregada por Philip Converse e seus colegas de Michigan. No que tange aos dados empíricos, utilizaremos principalmente dados extraídos em sua maioria desses trabalhos, e da minha dissertação de mestrado, na qual me preocupei especialmente em precisar e detalhar as diferenças entre os níveis de abrangência conceitual da tipologia de Michigan ao ser aplicada à realidade brasileira, comparando os dados resultantes dessa pesquisa com a realidade dos EUA.
O exame comparativo de dados relativos a um país cêntrico (rico, ou “desenvolvido”), como os EUA, com os dados a respeito de um país periférico (relativamente pobre, ou “em desenvolvimento”), como o Brasil, contribuirá para nos oferecer uma visão mais completa da humanidade como um todo, especialmente em vista do fato que dois terços da população mundial encontram-se nos países periféricos (pobres, ditos “subdesenvolvidos”).
Níveis de Abrangência na Compreensão Político-Social da População
Através do exame desses dados empíricos procuraremos, por um lado corroborar e, por outro, dar maior fundamentação e também precisão quantitativa ao aspecto da diversidade inerente à concepção de humanidade que procuramos apresentar.
Interessam-nos, muito especialmente, as diferenças existentes entre os níveis de abrangência político-social constatados, de um lado, naquela parcela da população que podemos denominar de “elite”, isto é, a porção mais intelectualizada da população, e de outro lado, no grosso da população, que podemos denominar de “massa”, a qual está enquadrada na esfera de influência da “elite”, conforme será evidenciado à luz dos dados que examinaremos nesse capítulo.
É um fato bem conhecido pelos institutos de pesquisa de opinião pública, ou pelas agências de publicidade que trabalham com diferentes segmentos da população, e que foi muito bem apanhado nos trabalhos pioneiros de Philip Converse e seus colegas, que os diferenciais existentes entre as quantidades de informação abarcadas pelos indivíduos da elite e pela massa em geral são simplesmente impressionantes. Dentro de uma amostra global da população, essas quantidades variam desde um número muito grande de informações bem organizadas ao nível da “elite”, até ínfimas porções entre os indivíduos de menor abrangência ou entendimento dos fatos sociais.
Com base nos dados oriundos dos “surveys” (pesquisas amostrais) aplicados à população norte-americana como um todo, Philip Converse revela em seus textos que muitos fatos importantes são observados à medida que se desce nessa escala de quantidades de informação abarcadas pelos indivíduos.
As Diferenças: Quantificação da Inter-Relação nos Sistemas de Crença
Em primeiro lugar, os dados das pesquisas de Philip Converse demonstram que rapidamente desaparece nos sistemas de crenças da população a compreensão, ainda que genérica, a respeito das principais, e mais comuns, correntes político-ideológicas. Para termos uma ideia inicial, essa compreensão se desvanece mesmo antes de se atingir 10 % da população norte-americana, ou seja, o percentual dos que no início dos anos 60 possuíam grau universitário. E que, a partir daí, um número cada vez maior de informações importantes estão ausentes, resultando em um declínio crescente daquilo que Converse chamou de “inter-relação” entre os diferentes elementos, informações ou ideias que compõem os sistemas de crença dos indivíduos.
Além disso, que a amplitude desses sistemas de crença vai se tornando cada vez menor e que, ao invés de grandes quantidades de informações bem organizadas ao nível da “elite”, logo passamos a “encontrar uma proliferação de aglomerados de ideias entre os quais pouca inter-relação é sentida, mesmo, frequentemente, em casos de inter-relação puramente lógica.” (Converse, 1964, p. 213; grifo nosso)
A respeito desse conceito de “inter-relação” Converse esclarece que:
As Diferenças: os Elementos de Maior Centralidade
Por outro lado, o caráter dos objetos de maior centralidade nos sistemas de crença dos indivíduos também sofre notáveis e sistemáticas mudanças ao descermos na referida escala de quantidade de informações. Esses objetos mais centrais mudam, segundo Philip Converse, desde o “remoto, genérico e abstrato para o crescentemente simples, concreto, ou “perto de casa”.” (idem, p. 213; grifo nosso) Essa mudança, em termos de conteúdos de maior centralidade, tende a se dar, por exemplo, dos princípios ideológicos abstratos para os grupos ou categorias sociais mais conhecidos (classe social, categoria econômica, religião etc.). E desses grupos para os líderes carismáticos e, finalmente, para temas da vivência imediata dos indivíduos, tais como a família, o trabalho e as amizades.
Como dissemos, a maior parte dessas mudanças são de um modo geral bem conhecidas, a exemplo de certas características do mundo ideacional dos indivíduos de mais baixa renda e/ou escolaridade, tais como a predominância do pensamento concreto e de perspectivas temporais de curto prazo. Contudo, Converse vai além desse conhecimento genérico ao ressaltar que:
As Diferenças: O Papel Organizativo dos Conceitos Abstratos
A partir de observações fundamentais como essa acima, Converse tratou de examinar mais detalhadamente a realidade e o perfil dessas mudanças de alcance na consciência sociopolítica da população em geral.
O estudo cuidadoso das entrevistas trazidas pelos surveys (pesquisas amostrais) – os quais incluíam tanto questões fechadas (com respostas previamente estruturadas), quanto farta quantidade de questões abertas (com possibilidade de respostas totalmente livres por parte dos entrevistados) – revelou a esses pesquisadores que a quantidade e a organização das informações abarcadas pelos diferentes indivíduos em seus sistemas de crenças estão intimamente relacionadas com o que eles chamaram de “dimensões ideológicas de avaliação”.
Isto é, que certas ideias abstratas funcionam como conceitos organizadores que permitem a inter-relação entre os elementos e conjuntos de informações em um sistema de crenças, e permitem que o indivíduo, nas palavras de Philip Converse, “localize e dê sentido a uma mais ampla gama de informações sobre um domínio particular do que lhe seria possível sem tal organização.” (idem, p. 214; grifo nosso)
Um exemplo desse tipo de dimensões ideológicas de avaliação, o qual é muito usado nos EUA, e que é muito útil para sintetizar e organizar eventos e informações não apenas nos EUA, mas em muitos países, nos é dado pelos conceitos de “liberal” e de “conservador”. No Brasil, bem como em muitos outros países, essa classificação de “liberal-conservador” é frequentemente substituída pela de “progressista-conservador” ou ainda pela classificação “esquerda-direita”, a qual abordaremos mais adiante quando examinarmos os dados empíricos.
Converse observa que essas dimensões ideológicas de avaliação não são usadas apenas pelos indivíduos para economia interna de seus sistemas de crença, mas que elas também são frequentemente utilizadas pelos analistas que as empregam na caracterização de eventos e, inclusive, na classificação das atitudes da população como um todo.
Em vista disso, Converse chama a atenção para o fato de que dimensões de avaliação dessa natureza se constituem em abstrações de alta ordem se considerarmos a população como um todo e que “tais abstrações não são ferramentas conceituais típicas do “homem da rua”.” (idem. p. 215; grifo nosso)
Mais do que isso, que a parcela da população que domina e utiliza tais dimensões ideológicas de avaliação se constitui em uma pequena minoria, conforme logo constataremos ao examinarmos os dados empíricos.
As Diferenças: Níveis de Abrangência da Classificação de Converse
A partir dessas constatações, Converse e seus colegas se preocuparam em definir algumas categorias que pudessem revelar, com certa precisão, o perfil dessas mudanças ideacionais na população. A esse respeito Converse relata que:
Esses estratos, então, se constituíram na tipologia de análise que será descrita a seguir, a qual foi amplamente utilizada nas obras mencionadas acima, e que será o nosso principal instrumento para a constatação empírica do aspecto das diferenças dentro da humanidade, bem como para dar-lhe maior precisão e detalhamento.
Nível I: Ideólogos
Nível II: Quase-Ideólogos
No segundo estrato dessa classificação foram selecionado
Nível III: “Interesse de Grupo”
Foram classificados no terceiro estrato aqueles entrevistados que não se valeram de quaisquer dessas dimensões abrangentes, ainda que avaliassem ações sociais, políticas ou econômicas, bem como partidos e candidatos em termos de suas repercussões e relações com os grupamentos sociais com os quais se identificam, tais como categorias econômicas, religiosas, raciais e assim por diante. Em vista disso, esse nível foi denominado de “interesse de grupo”, sendo que os indivíduos mais sofisticados nesse estrato “demonstraram um apercebimento da existência de um conflito entre “grandes empresas” ou “ricos”, de um lado, e “trabalho” ou “trabalhadores” de outro, sendo os partidos e os candidatos situados nessa perspectiva.” (idem, p. 216; grifo nosso)
As características desse terceiro estrato podem gerar, à primeira vista, certa confusão em relação às diferenças existentes entre esse nível de conceptualização e os primeiros mais ideológicos, em vista da argumentação de que esse conflito entre grandes grupamentos sociais, sobretudo entre “grande capital” e “trabalhadores”, se constitui, segundo certas perspectivas teóricas, no cerne da questão ideológica.
Entretanto, independente do mérito teórico dessas perspectivas ideológicas, as diferenças entre esses estratos são bem marcantes. Um exemplo dessas diferenças marcantes diz respeito ao fato de que a menos que uma questão se relacione de uma forma quase obviamente punitiva ou recompensadora em relação aos interesses dos grupamentos com os quais os indivíduos desse estrato se identificam “lhes falta a apreensão contextual do sistema sociopolítico para perceber como deveriam responder a essas questões sem que lhes seja informado pelas elites que gozam de sua confiança.” (Converse, idem, p. 216; grifo nosso)
Mais ainda, o seu interesse por questões relativamente abrangentes não é suficientemente forte para prestarem muita atenção nas informações relativas a essas questões, e se acontecer de não receberem tais comunicações “o conhecimento de suas afiliações grupais pode ser de pouca valia para predizer suas respostas.” (idem, p. 216; grifo nosso) Philip Converse esclarece, entretanto, que essa falta de comunicações quanto a essas informações não é muito comum. Converse denominou esse comportamento típico dos indivíduos desse estrato de “ideologia por procuração”.
Nível IV: “Natureza dos Tempos”
O quarto estrato de classificação foi definido, em boa medida, de uma forma residual. Nele foram selecionados os entrevistados que fizeram em suas avaliações considerações sociopolíticas de algum tipo ou de outro, mas que não se valeram de argumentos ou atitudes que pudessem ser classificadas em qualquer dos estratos anteriores. Esse estrato foi denominado de “natureza dos tempos” porque os principais modos de avaliação dessa categoria dizem respeito a um relacionamento entre eventos sociais, políticos ou econômicos, bem como partidos e candidatos, com momentos ou estados socioeconômicos gerais de depressão ou de prosperidade.
Outro modo principal de avaliação também característico dos indivíduos selecionados nesse grupo é o relacionamento de eventos, partidos etc., com questões particulares pelas quais sintam gratidão ou indignação pessoal, sem indicação alguma de que as vejam como representativas de posturas ideológicas, ou mesmo como estando relacionadas aos grupamentos sociais mais amplos.
Nível V: “Sem Conteúdo Tipicamente Político”
Finalmente, o quinto estrato enquadrou aqueles indivíduos cujas avaliações do cenário sociopolítico não apresentaram qualquer relação com questões tipicamente políticas, sendo por essa razão denominados de “sem conteúdo tipicamente político” ou, para simplificar, “sem conteúdo político”. Entre os indivíduos selecionados nesse estrato alguns até mesmo declararam simpatia por algum partido, mas sem conhecer qualquer coisa de suas posições ideológicas, ou mesmo questões mais concretas que pudessem caracterizar o seu programa ou plataforma.
Exemplos típicos desse estrato são os indivíduos que nos processos eleitorais se guiam meramente pelas qualidades pessoais dos candidatos, não raro por qualidades bastante singulares tais como a beleza física, a voz, a simpatia, a popularidade ou mesmo o clube esportivo com qual o candidato esteja relacionado, ou coisas desse tipo. Ainda foram selecionados nesse estrato, é claro, todos os entrevistados que declararam prestar tão pouca atenção às questões políticas que não se sentiam capazes de dizer qualquer coisa sobre plataformas políticas, ou mesmo sobre partidos e candidatos.
A Pesquisa Utilizada
Antes de entrarmos no exame dos dados empíricos, parece oportuno tecer alguns comentários quanto ao rigor estatístico das obras citadas, das quais obtivemos a maioria dos dados que a seguir serão examinados. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que as técnicas amostrais empregadas nestes estudos são extraordinariamente confiáveis, seguramente exemplos do que há de melhor em amostragem estatística, e que os resultados obtidos para muitas variáveis que também são acompanhadas por censos demográficos (levantamentos que pesquisam todos os indivíduos de uma população) foram comparados entre si. O perfil obtido pelas amostras sempre foi muito parecido com o do censo. Um exemplo dessas comparações é dado abaixo em relação à variável “religião dos porto-alegrenses” retirado da minha dissertação de mestrado:
Outras comparações desse tipo, bem como uma detalhada descrição das rigorosas metodologias amostrais utilizadas, podem ser encontradas nessa dissertação de mestrado. É certamente difícil para as pessoas que não conhecem de perto estudos como os citados avaliarem o quão detalhadamente os questionários aplicados investigam as atitudes e o alcance da consciência política dos entrevistados, tanto em relação ao sistema sociopolítico como um todo, quanto em relação a um grande número de questões mais específicas.
Não se tratam de estudos rápidos com meia dúzia de questões fechadas, como não raro são realizados por institutos dedicados a aferir vários aspectos da opinião pública. São estudos cujos questionários incluem muitas questões abertas, e que são aplicados por pessoas treinadas para realizarem essas entrevistas.
Passemos, então, ao exame dos dados empíricos selecionados, os quais são apenas uma pequena parcela da grande quantidade de dados apresentados nas obras mencionadas. Essas obras, por sua vez, também tiveram que selecionar uma pequena parcela dentre a totalidade dos dados brutos relevantes gerados pelos levantamentos amostrais.
O Perfil dos Níveis de Abrangência nos EUA
A distribuição da população norte-americana dentro dos cinco estratos ou níveis de abrangência conceitual resultante das pesquisas de Converse e seus colegas, e que aparece nas publicações mencionadas publicadas em 1960 e 1964 (que se tornaram clássicos nessa área de estudos), encontra-se no quadro mostrado a seguir:
– Distribuição da População Eleitoral Total e dos Votantes nos EUA, por Níveis de Abrangência Conceitual (a distinção entre população total e votantes deve-se ao fato do voto não ser obrigatório nos EUA; o voto obrigatório é uma prática usada em alguns países, geralmente do Terceiro Mundo, a exemplo do Brasil).
Uma compreensão mais plena da enorme relevância teórica e prática dos dados revelados por esse quadro talvez somente seja possível após o exame do conjunto de outros dados que examinaremos mais adiante. Ou, até mesmo, somente após as análises dos próximos capítulos acerca da importância das premissas a respeito dos seres humanos aqui apresentadas, ou seja, da sua relevância para a solução dos graves problemas enfrentados pela humanidade.
Mesmo assim, se apenas levarmos em conta que essa é uma distribuição que revela o perfil do alcance da consciência política da população dos EUA – que é uma das nações mais ricas do planeta – e que as nações mais pobres certamente apresentarão uma distribuição bem mais carregada nos estratos de mais baixa consciência (como veremos para o caso do Brasil), então, somente esse primeiro vislumbre já nos mostra que apenas uma pequena parcela da população possui um nível relativamente alto de informações e de alcance conceitual abstrato.
Esse simples fato significa uma fortíssima corroboração acerca da existência de grandes diferenças de abrangência na compreensão da realidade social entre diferentes grupos da população como um todo.
Vimos, no quadro anterior, que apenas 2,5 % da população norte-americana podem ser considerados como tendo um nível razoável de compreensão quanto às principais correntes de pensamento sociopolítico, ou quanto às grandes questões políticas de âmbito nacional e internacional.
Quem conhece bem essas pesquisas sabe, perfeitamente, que esses resultados não estão exagerados, para maior ou para menor. Como alguém que participou tanto da concepção de perguntas, quanto da aplicação e do processamento dos questionários, posso afirmar que tais resultados refletem o que há de melhor em estudos amostrais, bem como seriedade e rigor classificatório. Além disso, os resultados de várias pesquisas nos revelam que os percentuais, mesmo dos menores grupo, de “Ideólogos” e “Quase-Ideólogos”, não são passíveis de erros muito significantes. Contudo, mesmo que essas pesquisas, da maior seriedade e precisão quantitativa, estivessem muito erradas, e que, por exemplo, o percentual de “ideólogos” fosse duplicado para 5 %, ou mesmo quadruplicado para 10 % (o que já se constitui em um resultado absurdo), ainda assim teríamos uma proporção de 1 para 9 (10 % contra 90 %), de “ideólogos” em relação ao restante da população, o que ainda assim não alteraria fundamentalmente o panorama que procuramos mostrar.
Portanto, esses dados sobre os níveis de conceptualização da população dos EUA são, desde logo, muito instrutivos. Segundo Philip Converse os dados desse quadro deveriam ser “contracenados com a suposição usual da elite de que uma significativa maioria do público apreende os principais aspectos da realidade sociopolítica de forma semelhante aos mais altamente educados.” (Converse, 1964, p. 218; grifo nosso)
Esses dados também devem ser contracenados com as teorias que supõem que essas diferenças ideacionais podem ser substancialmente transformadas com relativa facilidade. Nos referimos, sobretudo, à concepção marxista para a qual a consciência humana é um mero produto das circunstâncias históricas e materiais a que estiver submetida. Ora, esses dados, em se tratando de um país como os EUA, dos mais opulentos e com um sistema educacional que abrange praticamente a totalidade da população, são reveladores de como essas transformações ideacionais não ocorrem da maneira e com o determinismo que essa corrente de pensamento acredita.
A Influência das Circunstâncias Materiais
Embora não disponhamos de dados empíricos sobre a realidade ideacional da população da ex-União Soviética (agora extinta), não é difícil afirmar que essa realidade não seria em hipótese alguma melhor do que a da população dos EUA. Isso depois de sete décadas de uma organização político-econômica de inspiração marxista. Ora, não pode haver melhor demonstração histórica do que essa de que as mudanças ideacionais na massa são processos temporais lentíssimos.
Com isso, não estamos procurando negar que as circunstâncias materiais exercem uma influência significativa sobre o desenvolvimento da consciência humana. Trata-se, isto sim, de afirmar que existem outros fatores psicossociais que estão na base das grandes diferenças de consciência que observamos na população e que os pensadores materialistas não costumam considerá-los apropriadamente. E que, em relação a essas grandes diferenças ideacionais, esses outros fatores psicossociais são os principais, não importa o quão pouco ainda sejam conhecidos cientificamente.
Cabe relembrar a esse respeito a parábola bíblica do semeador, já anteriormente citada. Se a semente cair sobre as rochas ou em terra pouco profunda, ela não pode ter um desenvolvimento favorável. Isso diz respeito, é claro, à influência inegável do meio ambiente material. Porém, mesmo entre aquelas que caírem em terra fértil e profunda, umas darão frutos a trinta por um, outras a sessenta por um, e ainda outras a cem por um.
Ou seja, mesmo quando as condições do ambiente material forem muito boas para todos – e, evidentemente, devemos lutar por isso – ainda assim há fatores psicológicos (ou intrínsecos às qualidades latentes da semente, que simboliza a realidade psico-espiritual do ser humano) que implicariam na manifestação de grandes diferenças de capacidades, sobretudo intelectuais e ético-morais (intelecto aqui significando a capacidade de ver com profundidade e amplitude, que é o significado etimológico dessa palavra: – inter legere, ler dentro), entre os membros da coletividade humana.
As Características dos Diferentes Níveis de Abrangência
Antes de examinarmos os dados sobre o percentual de cada um desses níveis no Brasil, analisaremos alguns quadros que visam mostrar, mais claramente, o perfil das diferenças ideacionais (de abrangência da realidade sociopolítica e da quantidade de informações sobre essa realidade) entre as cinco categorias de classificação definidas por Converse e seus colegas, que foram descritos acima. Esses quadros são apenas alguns dos vários apresentados em minha dissertação, antes mencionada, que trabalhou especialmente sobre essas diferenças ideacionais.
A pesquisa de campo que gerou os dados brutos dessa dissertação foi realizada simultaneamente em várias capitais do Brasil. Ela foi elaborada e aplicada por pesquisadores de um grupo das principais universidades desse país. Os dados que apresentaremos a seguir dizem respeito a Porto Alegre, e ali os dados brutos foram gerados pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Os níveis de abrangência conceitual de Converse aparecem, por economia de espaço, apenas como numerais romanos, de I a V; na ordem de maior para menor abrangência conceitual. Ou seja: (I) Ideólogos; (II) Quase-Ideólogos; (III) Interesse de Grupo; (IV) Natureza dos Tempos; (V) Sem Conteúdo Político.
Quantidade de Informações Sobre Política
O primeiro quadro abaixo nos mostra, em termos percentuais, a frequência com que os indivíduos de cada um desses cinco níveis de abrangência costumam ler, nos jornais, notícias sobre política:
Esse primeiro quadro já se constitui em um indicador muito nítido a respeito do grau de interesse e de informação sobre a realidade sociopolítica nos estratos dos diferentes níveis de abrangência conceitual na população. Esses percentuais mostram claramente o rápido declínio desse interesse e da quantidade de informações, à medida que descemos na escala de abrangência conceitual. Eles confirmam o que Converse chamou de “agudo e constante declínio”, na seguinte citação:
Os percentuais, é claro, são relativos a cada um dos níveis, e isso confere aos dados desse e dos seguintes quadros uma relevância que praticamente independe do local em que foram pesquisados. Eles dizem respeito às características de cada estrato e, por essa mesma razão, se constituem em muito boas aproximações para revelar o perfil de cada um desses estratos em qualquer lugar do mundo. Também por essa razão são tão reveladores a respeito das diferenças existentes dentro da humanidade. O que mudará apreciavelmente entre os diferentes países será o percentual relativo de cada um dos estratos dentro da população como um todo, conforme veremos depois ao compararmos os dados dos EUA com os dados de Porto Alegre.
Graus de Interesse por Política
O “agudo e constante declínio” fica mais gráfico ainda ao examinarmos o quadro seguinte, que mostra as respostas obtidas para uma pergunta direta:
– “De um modo geral, o(a) Sr.(a) se interessa por política?”
Poucos quadros poderão ser mais esclarecedores do que esse acima, a respeito das diferenças existentes dentro do perfil da consciência sociopolítica da população como um todo.
Se somarmos os dados das colunas dos que declararam ter pouco interesse pela realidade política do seu país, com os dados dos que responderam não ter nenhum interesse pela mesma, o crescimento do desinteresse por essas questões que geralmente, como disse Converse, são abrangentes e abstratas, cresce de forma muito aguda de 11 % entre os Ideólogos, para 59 % entre os Quase-Ideólogos, 77 % no nível Interesse de Grupo, 93 % no nível Natureza dos Tempos e, finalmente, 98 % no nível Sem Conteúdo Tipicamente Político.
Votaria se Não Fosse Obrigatório?
O seguinte é outro quadro revelador, pois mostra as respostas à questão de se a pessoa iria votar mesmo que o voto não fosse obrigatório. Cabe esclarecer a algum leitor de fora do Brasil que em nosso país o voto é obrigatório, como um imposto que o cidadão deve recolher compulsoriamente. Estando sujeito a uma multa e outras sanções caso falte com essa obrigação legal.
É quase desnecessário dizer que essa prática do voto obrigatório é muito nociva para o país. Ela desqualifica ainda mais o eleitorado que, mesmo sem ela, já é tremendamente desqualificado em se tratando de questões abrangentes, conforme esses quadros estão a mostrar de forma clara. Essa questão do voto obrigatório já é um bom exemplo, dentre outros tantos que posteriormente examinaremos, de problemas que têm sua origem na ausência de uma correta perspectiva acerca das principais características dos níveis de abrangência conceitual na humanidade.
No entanto, não deveria causar surpresa o fato do voto obrigatório ser defendido por tão longo tempo, quer pela elite de direita, quer pela elite de esquerda nesse país. Essas correntes de pensamento não compreendem e negam a perspectiva sobre as capacidades humanas que estamos apresentando. Podemos admitir que em alguns casos o voto obrigatório tenha sido defendido por interesseira esperteza, mas, ao que tudo indica, na grande maioria dos casos, esse apoio se deve ao viés imposto pelos princípios fundamentais das correntes de pensamento dominantes, bem como pela consequente ignorância de seus efeitos nocivos.
Conhecimento Sobre Eleições Diretas
Outro quadro revelador dos limites da abrangência da compreensão dos eventos sociopolíticos pela massa é o seguinte, o qual tabula as respostas à questão:
– “Este ano nós vamos ter eleições diretas para governador. O(a) Sr.(a) poderia me dizer o que entende por eleição direta?”
Em 1982 estávamos no Brasil em pleno período da chamada abertura política. Um período de transição entre a ordem do autoritarismo ou ditadura militar para a ordem democrática-liberal, e até então os governadores dos estados não eram eleitos pelo voto direto.
Nesse ano, pela primeira vez depois do regime militar, os governadores seriam eleitos diretamente. Era, portanto, um fato político da maior notoriedade e importância dentro da moldura política da nação. Não obstante, os números desse quadro mostram que grande parte da população falha em estar informada mesmo sobre uma questão politicamente tão trivial quanto essa.
Se somarmos todos os que declararam não saber com os que arriscaram responder mas deram uma resposta errada, chegamos a um percentual de 46 % da população eleitoral, contra os 54 % que responderam corretamente. Quase a metade da população votante não possuía uma informação tão elementar!
Conhecimento Sobre Esquerda e Direita
Naturalmente, quando a questão é mais abstrata o número total dos que desconhecem é ainda bem maior. Isso é o que podemos ver no quadro seguinte com os dados sobre a questão:
– “O que o(a) Sr.(a) entende por esquerda e direita em política?”
No caso dessa questão, somando-se todos os que declararam não saber com os que deram uma resposta errada chegamos a um percentual de 61 % da população. Portanto, apenas 39 % possuíam esse tipo de informação em 1982 em Porto Alegre, que é uma das capitais com melhores índices de escolaridade no Brasil. É importante observarmos as diferenças que aparecem nesse quadro entre os dados dos grupos I, II e III, em relação aos grupos IV e V. Enquanto nos grupos I e II quase ninguém desconhece o que é esquerda e direita em política, no grupo III ainda apenas 25 % desconhecem. Mas a situação é completamente diferente a partir do grupo IV onde já 70 % desconhecem, ou no grupo V onde 91 % desconhecem.
As Diferenças Entre EUA e Brasil (Porto Alegre)
Essa grande diferença entre esses três primeiros grupos e os dois últimos é muito importante para podermos ter um perfil realístico da abrangência da consciência sociopolítica da população. Isso nos permite compreender, por exemplo, porque nos países ricos a população parece ter um grau de racionalidade muito maior do que em países como o Brasil.
Acontece que nesses países o voto não é obrigatório, e já vimos anteriormente que nessas condições os grupos nos quais um grande percentual não vai votar são apenas os grupos IV e V. Se somarmos a isso o fato de que nesses países a proporção dos três primeiros grupos é significativamente maior, sobretudo o terceiro, o do “Interesse de Grupo”, como podemos observar na comparação do quadro seguinte, então entenderemos claramente porque nos países ricos, como os EUA, o comportamento eleitoral e, consequentemente, os resultados eleitorais apresentam uma maior racionalidade.
Não estamos pretendendo, nem de longe, afirmar que o mero instituto do voto obrigatório é a causa de todos os nossos problemas. De modo algum! Estamos apenas tomando esse fato para exemplificar que a perspectiva aqui apresentada, a qual leva em conta a unidade essencial dos seres humanos, bem como suas grandes diferenças de capacidades manifestadas, nos permite uma visão muito mais clara a respeito da realidade sociopolítica das nações.
Vejamos, então, qual o perfil da distribuição do eleitorado de Porto Alegre dentro desses cinco grupos de alcance conceitual. Para facilitar as comparações repetiremos nesse quadro os dados relativos à população dos EUA, já apresentados anteriormente:
Antes de examinarmos os números desse quadro precisamos comentar dois aspectos. Em primeiro lugar, cabe observar que os dados para os EUA publicados por Converse e seus colegas (1960), e por Converse (1964) dizem respeito ao início dos anos sessenta. Já os dados da minha dissertação (1984) dizem respeito ao início dos anos oitenta (1982). Essa diferença de um período de cerca de duas décadas pode alterar um pouco a situação em favor do Brasil. Ou seja, em 1982 a distribuição dos níveis de abrangência nos EUA poderia estar um pouco melhor, devido à maior escolaridade, melhoras nas comunicações etc.
A segunda observação é que os números para Porto Alegre são certamente melhores do que seriam os números de uma distribuição desses grupos para o Brasil como um todo. A análise de outras pesquisas de diferentes fontes nos permite afirmar que os números para Porto Alegre são semelhantes aos das outras grandes capitais brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte etc., e que a situação nessas capitais é significativamente melhor do que a situação do Brasil como um todo.
Tomemos, como exemplo, apenas um dado a esse respeito. Em 1986, ano em que se elegeu uma Assembleia Constituinte no Brasil, o Instituto Ibope realizou várias pesquisas para aferir o conhecimento da população a respeito da Constituinte. Numa delas, publicada no jornal Zero Hora (07/05/1986), o percentual de pessoas que não sabia responder o que era a Constituinte chegou, no Rio Grande do Sul, a 70,5 %. Na mesma época, o Ibope realizou pesquisa semelhante no Nordeste e este percentual alcançou os 90 %, e para a média nacional o Ibope encontrou que 82 % da população não sabiam explicar o que era a Constituinte. Esses números são suficientes para exemplificar a observação feita acima de que a situação para o Brasil como um todo será bem menos favorável do que aquela de Porto Alegre.
Com essas duas observações em mente, voltemos, então, para a análise dos números do quadro com os dados para os EUA e para Porto Alegre. A que conclusões de caráter geral esse quadro nos permite chegar? O exame desses números nos permite observar dois fatos principais. O primeiro é que realmente existem diferenças para melhor a favor das nações ricas, como seria de se esperar. E que essa situação mais favorável resultou em uma camada média expressivamente maior do que aquela que podemos observar para Porto Alegre, e por extensão, mais ainda, para o Brasil como um todo.
A soma dos dois grupos de maior abrangência dá 11,5 % para os EUA, e dá 10 % para Porto Alegre. É claro que essa não é uma diferença importante. Muito diferente, contudo, é a situação observada quanto ao terceiro grupo (Interesse de Grupo), o qual é o grupo intermediário. Enquanto nos EUA esse grupo alcançou 42 %, em Porto Alegre esse número foi de apenas 21,5 %. Essa sim é uma diferença da maior importância, a qual joga muita luz sobre a realidade política desses países, sobretudo se levarmos em conta o que já mencionamos antes sobre o voto não ser obrigatório nos EUA, e ser obrigatório no Brasil, e mais ainda se considerarmos as diferenças de Porto Alegre em relação ao Brasil como um todo.
Ou seja, os grupos I, II e III já somam a maioria da população dos EUA (53,5 %) e se acrescermos a isso o fato de que boa parte do grupo IV e a maioria do grupo V não vão votar, uma vez que o voto lá não é obrigatório, então fica claro porque o comportamento eleitoral em países como os EUA apresenta maior racionalidade; maior do que já apresentaria se o voto no Brasil também não fosse obrigatório.
Voltando às nossas conclusões gerais, essa melhor condição observada para os EUA mostra que melhores condições de riqueza, bem como um sistema educacional mais abrangente, podem de fato melhorar substancialmente o perfil do alcance conceitual na população como um todo.
Mas a segunda conclusão de caráter geral é que, apesar de ser significativamente melhor a distribuição desses grupos nos países ricos, as diferenças de abrangência persistem como um dado fundamental dentro da população, mesmo nos países ricos, população que, como já dissemos, engloba apenas 1/3 da população mundial. Que dizer, então, da sua importância no que diz respeito aos países pobres, que somam 2/3 da família humana?
Os dados aqui apresentados constituem apenas uma pequena parcela dos dados existentes nos trabalhos citados. Contudo, eles já são suficientes para corroborar amplamente o aspecto da diversidade como sendo uma característica básica, e absolutamente necessária, para que se possa ter uma visão minimamente satisfatória dos níveis do alcance conceitual e informacional da população desses países e, por extensão, da população mundial.
O Papel Decisivo das Elites
Outra conclusão de caráter geral, também da maior importância tanto teórica quanto prática, é a de que os grupos de consciência social mais abrangente (as chamadas elites) possuem um papel decisivo no desenvolvimento dos processos sociopolíticos em geral, fato que lhes imputa uma enorme responsabilidade, a qual quase sempre não é suficientemente bem reconhecida.
Philip Converse se referiu a essa imensa responsabilidade nos seguintes termos:
Até aqui esse aspecto já encontrou uma razoável corroboração, bastando nos lembrarmos da afirmação de Converse de que mesmo os integrantes do Grupo III (Interesse de Grupo) já não conseguem reconhecer os efeitos de uma dada política sobre os seus próprios grupos de interesse, a menos que se trate de uma questão muito elementar ou óbvia. Ou seja, mesmo os indivíduos do Grupo III necessitam, para se posicionarem politicamente, que membros da elite de sua confiança apontem os efeitos das políticas de maior alcance – configurando o que Converse denominou de “ideologia por procuração”.
Alguns dados adicionais, no entanto, podem corroborar mais fortemente essa enorme influência da elite sobre a massa. Em primeiro lugar retomemos a questão já mencionada do voto obrigatório no Brasil. Até a presente data, infelizmente, não há nenhum movimento consistente dentro do Congresso visando modificar esse instituto tão nocivo da nossa vida política. Contudo, alguns anos atrás o IBGE em uma pesquisa amostral de enorme abrangência (cuja base atingiu 300.000 entrevistados) revelou que apenas 34,5 % da população era a favor do instituto do voto obrigatório; enquanto 56,9 % eram contra; e 8,6 % não sabiam ou não declararam. (Publicado em Zero Hora, em 29/10/1989)
Portanto, embora a maioria da população seja contra, as elites pouco se importaram e, até agora, vários anos após a publicação dessa pesquisa, nada se passou, mesmo tendo nesse período ocorridos as crises de dois presidentes eleitos (Fernando Collor e Dilma Roussef) terem sofrido impeachment e verem seus mandatos interrompidos, ao serem condenados por delitos.
Felizmente, essa influência avassaladora da elite nem sempre se dá no sentido nocivo, como podemos observar num outro exemplo bem conhecido, que é o da questão da pena de morte. Várias pesquisas já mostraram que a maioria da população é a favor desse instituto. As elites políticas, no entanto, até agora não se curvaram a esse vil aspecto da consciência da massa, muito embora já haja um movimento de vários congressistas nessa direção. Não que na prática já não exista a pena de morte em nosso país. Ela existe, ao menos para os pobres ou miseráveis, uma vez que o extermínio de delinquentes, sobretudo bem jovens, é uma prática frequente.
Outro exemplo nesse sentido, ainda mais gráfico, é o da legalização dos partidos comunistas. Quando esses partidos foram legalizados, no início dos anos oitenta, após o processo chamado de “abertura política”, uma grande maioria da população era contra essa legalização.
Esse exemplo é revelador em um duplo sentido. Em primeiro lugar, porque ele revela como a elite pode e, de fato, condiciona a opinião pública quando assim o decide. Isso porque essa atitude da população é resultado de anos de propaganda contrária aos comunistas, e resultou em que uma grande maioria (como abaixo veremos) se posicionasse contra a legalização dos partidos comunistas. Esse exemplo é muito impressionante porque, como já vimos, a grande maioria da população não tem sequer uma noção precisa do que seja esquerda e direita em política, que dizer a respeito dos programas dos partidos comunistas.
O outro sentido impressionante desse exemplo acerca da enorme influência da elite é que quando essa se decidiu pela legalização desses partidos eles foram legalizados tranquilamente e nada, mas nada mesmo, se passou em contrário. Não obstante, a grande maioria era contra, como atestam os números do quadro que segue para a população de Porto Alegre, com as respostas à questão:
– “O(a) Sr.(a) é a favor ou contra a legalização do Partido Comunista?”
Somando-se o total dos que foram a favor chegamos apenas a 15 % da população! Os que foram contra totalizaram 61,4 %, enquanto 23,6 % declararam não saber ou não responderam. Mas, igualmente importante no quadro acima é que ele mostra que tão somente no nível I, dos Ideólogos, a maioria foi a favor da legalização, pois mesmo no nível II já houve um empate. Os números são muito ilustrativos, portanto, sobre a influência avassaladora da elite. Entre os Ideólogos uma forte maioria era a favor, e a legalização acabou ocorrendo, sem que nem um pequeno protesto fosse ouvido, a despeito de uma vigorosa maioria da população se declarar contra.
Esses números ensejam a oportunidade para mostrar um exemplo a respeito da fidedignidade, da seriedade e da precisão dos dados aqui apresentados sobre as atitudes e a abrangência da consciência sociopolítica da população. Isso porque outra fonte, completamente independente, de pesquisa (Ibope, Isto É, Gazeta Mercantil e TV Bandeirantes) realizou um levantamento dois anos depois (em 1984), nas regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro, e entre as questões aplicadas havia uma igual, assim formulada:
– “É a favor ou contra a legalização dos partidos comunistas no Brasil?”. Nessa pesquisa chegou-se aos seguintes números:
Esses números foram publicados na revista Isto É nº. 407, de 10/10/1984. A semelhança entre os dados é impressionante: – 61,4 % foram contra na pesquisa da UFRGS em Porto Alegre, 1982; e 59,8 % declararam-se contra na pesquisa do IBOPE para São Paulo e Rio de Janeiro, em 1984.
A Atualidade dos Dados
Outra observação pertinente é que muitas pessoas, por ignorarem a natureza dos fatos aqui apresentados, sempre tendem a pensar que nos últimos anos as coisas podem ter mudado muito, em termos da abrangência conceitual da população. Não raro dizem que como tudo tem mudado tão rapidamente hoje em dia, ou então, que como ocorreu tal ou qual evento importante, ou ainda que como o país se tornou cada vez mais urbano e industrializado, e que, em vista dessas razões, informações de dez ou vinte anos atrás não merecem muito crédito.
Ora, os números sobre a realidade da consciência sociopolítica da população de um país como os EUA já deveriam ser suficientes para nos mostrar que essas realidades ideacionais não mudam, senão em escala relativamente limitada, e que mesmo essas mudanças limitadas ocorrem lentamente. Isso porque o patamar de riqueza, urbanização e industrialização alcançados pelos EUA quarenta anos atrás, o Brasil como um todo somente alcançará sabe Deus daqui a quantas décadas, sendo aqui hipoteticamente muito otimistas.
Uma simples projeção pode nos auxiliar a visualizar melhor essa questão. Se projetarmos um crescimento econômico nacional bem razoável de 4 % ao ano, com um crescimento populacional bem modesto para os nossos padrões de 1,5 % ao ano, teremos um incremento real de riqueza média per capita/ano próximo dos 2,5 %. Ou seja, levaríamos mais de 80 anos para sair dos cerca de 4.000 dólares de renda per capita/ano do Brasil de nossos dias, para alcançarmos os 30.000 dólares per capita/ano que os EUA atingiram tempos atrás.
Mesmo assim, talvez seja oportuno apresentarmos alguns dados um pouco mais recentes e de outras fontes que mostram como essas coisas, feliz ou infelizmente, não mudam quase nada em questão de poucos anos. Vejamos os números de uma pesquisa da Datafolha, que entrevistou 5.260 pessoas em dez capitais brasileiras, em outubro de 1987, publicada na Folha de São Paulo, em 1/11/1987. A pergunta era:
– “Você sabe qual foi o primeiro país a fazer uma revolução socialista?”
Ou seja, em dez capitais, apenas 24 % é que sabiam a resposta correta para essa questão. Pode-se argumentar que se trata de uma questão um tanto sofisticada, e que mede muito pouca coisa. Mesmo assim, ela nos permite perceber claramente (ao compararmos esse coeficiente de acerto com os cerca de 30 %, no Rio Grande do Sul, que em 1986 sabiam o que era uma Constituinte; ou com os 39 %, em Porto Alegre, que em 1982 sabiam o significado de esquerda/direita em política) que todos esses números repetem um desenho muito constante, e que não se tratam de números fantasiosos ou pinçados aleatoriamente, mas sim de números que revelam uma severa realidade, sobre a qual muito poucas pessoas se dão ao trabalho de ponderar seriamente.
Vale a pena adicionar outro quadro, mais recente ainda, resultado de uma pesquisa do Ibope, que entrevistou 2.000 pessoas, em maio de 93. Esse quadro foi publicado na revista Veja de 2/6/1993, com as respostas para a pergunta:
– “O(a) Sr.(a) lembra do nome do candidato e do partido em que votou para deputado federal nas últimas eleições (final de 1989)?
Ou seja, metade da população não lembrava, pura e simplesmente, em que candidato ou partido votou naquela que é a eleição mais importante da nação. Da Câmara dos Deputados dependem todas as grandes leis do país, ou todas as principais decisões legislativas, ou mesmo, como já ocorreu na história recente, o impedimento de presidentes, o chefe máximo do poder executivo, além de tantos outros encargos da maior responsabilidade e importância para o país. Pois bem, com tudo isso em jogo, apenas 12 % da população lembrava tanto do candidato quanto do partido em que votou para deputado federal nas últimas eleições!
Se somarmos os 49 % que declararam não lembrar, com os 17 % que votaram em branco ou anularam o voto, e mais os 8 % que só lembraram do candidato e, portanto, têm um nível de informação tão baixo que nem sequer sabem a que partido pertencia o candidato em quem votaram, chegaremos a 74 %! Sem falar dos que votaram apenas em uma legenda partidária. Isso em maio de 1993. Dificilmente poderia haver corroboração melhor do que essa a respeito da validade dos dados gerais aqui apresentados.
Tendo apresentado um vislumbre acerca da unidade inerente à espécie humana (Capítulo 2), bem como um panorama acerca das diferenças que caracterizam a consciência política da população (Capítulo 3), podemos agora partir para a etapa seguinte de nossa argumentação. Assim, nos próximos capítulos contracenaremos esse panorama com as premissas das correntes de pensamento dominantes na atualidade, bem como com os modelos de organização política derivados das principais ideias dessas correntes, ainda amplamente hegemônicas em nossos dias.
Nos próximos capítulos daremos mais ênfase à crítica dos atuais modelos derivados do Liberalismo – as formas atuais de democracias liberais – pois esse é o sistema político hoje mundialmente dominante, além de ser o modelo que está organizando a vida política brasileira.
Procuraremos evidenciar que os grandes problemas enfrentados pela humanidade estão, de fato, relacionados com os equívocos inerentes às premissas das correntes de pensamento dominantes (Liberalismo e Marxismo) e à consequente incompetência das grandes instituições sociais deles derivadas, em especial seus modelos de organização política.
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